Wednesday, March 28, 2007

Melopeia

Abri suavemente, sem qualquer som, o tampo do piano de cauda que estava para ali abandonado naquela casa no meio de nenhures. Passei os dedos pelas teclas, tentando adivinhar que histórias e sentimentos teriam elas já cantado. Sacudi a intensa camada de pó sobre o pequeno banco almofadado e sentei-me, fechando os olhos e inspirando o mais fundo que o ar poeirento daquele sítio me permitia.
Deixei os meus dedos afundarem-se num primeiro acorde; menor, um tom triste e fúnebre. Sucedi-o com meia dúzia de notas tocadas levemente como um choro que desvanece na noite. Os dedos, pesados como o ar e o som que o enchia, caíam sobre as teclas como lágrimas esquecidas. Deixei-me afundar cada vez mais na crescente melancolia daquela melopeia chorosa, sem lágrimas que melhor pudessem cantar minha alma.
Seguindo a cadencia da musica encontrei-me a meio de um crescendo, elevando a voz daquele velho piano e da minha dor, lançando-me na loucura do desespero, cada nota gritando mais alto que a anterior. A minha alma berrava, e eu, embriagada, não sabia sequer que magoa era aquela que cantava. Os dedos dançavam fortemente sobre as teclas, a cabeça bailava de lado para lado e o coração parecia querer romper meu peito e manchar a sangue a melodia.
Bruscamente parei de tocar, fechei o tampo com força, o som ressoando pela casa vazia. Fugi daquele sítio.
"Não tenteis reproduzir os sentimentos de outrem. Não choreis em confessionário alheio"

Tuesday, March 20, 2007

Queimando fotos

Pego, totalmente ao calhas, numa fotografia de entre as muitas que tinha guardadas dentro de uma velha caixa de sapatos, enfeitada com desenhos que nela colei há anos já esquecidos. As fotografias ainda estão em bom estado, volta e meia vou lá mexer-lhes, como para ter a certeza que as memorias estão no sitio e não se tratou tudo de mais um dos meus estranhos e complexos sonhos.
A caixa, essa foi perdendo a cor com os anos e o sol. Parece-se comigo.

Trata-se de uma fotografia tirada numa visita de estudo qualquer - não estamos de uniforme - na qual devo ter cerca de 16 anos. Encontro-me entre alguns amigos (era essa a palavra?) e colegas (desta lembro-me bem). Suavemente aproximo a chama de tamanho médio do isqueiro ás extremidades da foto e observo como escurece e se dobra. A mesma foto, mas de contornos tão diferentes. É quase irónico, o poder de tão pequena chama, mas não estou para me debruçar sobre ironias ou filosofias. Estou apenas a queimar fotos. Não é nenhum ritual espiritual, não estou a fugir ao passado nem a tentar limpar a minha alma. Estou simplesmente a queimar fotos, como uma qualquer actriz de filme lamechas. Até as lágrimas ameaçam aparecer, de forma a melhor enganar o público.

O que fazer com estas cinzas? Não se pode dizer que cheirem muito bem, e estão para aqui a sujar-me o chão. Queimei a foto, já não a queria mais, mas parece que ainda vou ter de me ocupar do que resta dela. Que dores de cabeça que nos dão até as coisas que já se foram! Talvez faça bem ás plantas, já ouvi dizer isso das cinzas. Será que as cinzas de uma velha foto poderão ajudar algo a crescer? Parece-me estranho, mas daí a ciência e a vida e tudo isso são, em geral, estranhas.